sábado, 23 de fevereiro de 2008

PALAVRAS E ATOS INCOMPREENDIDOS EM LÍNGUA DE PÁSSARO

Ela era apenas uma "pássara", uma rolinha agreste. Uma sangue de boi. Penas cinzas, com um colar vermelho por todo o pescoço, ou uma cor de penas que mais se aproximasse do encarnado, como falam os caboclos.
Fez ninho ali, na romanzeira mágica. Numa época de estio, quase não havia folhas, que a cobrisse e fazia calor insuportável. Era uma casa de gente estranha. Uma mulher que fazia todas as coisas, e a melhor delas, era quando molhava as plantas e lhe dava banho. Gostava, mas protegia seu ovo. Uma criança já grande que não falava e outra mulher que saia pela manhã e voltava a noite.
Não lembra, não consegue reconstituir os fatos. De repente estava em uma gaiola. Intrépida. Queria voar. Ficava pulando de puleirinho em puleirinho. Gritava de angústia. O homem estranho, branco e barbudo. Gostava. Grande besta. Canto de dor. Me deixa voltar a voar e pousar em árvore alta. Gente presa não é feliz, bicho também não! Principalmente bicho que pensa. A sangue de boi passou alguns dias resignada. Comia alpiste ou algum pedaço de manga. Bibicava. E o barbudo ficava feliz. E ela desejava que ele fosse para o inferno, quando morresse. Inferno bem quente. Igualzinho quando faz calor embaixo de suas asas. E desejou, aquela pássara vingativa, que lá tivesse piungas, pra ele se ferrar de vez.
Passaram meses, não que tivesse acostumado-se ao cativeiro, mas afeiçoara-se ao barbudo e seus mimos. Alpiste e alguma fruta. Beijo e poesia. Desejava a pássara doida, tornar-se uma moça.Invejosa dos sorrisos das moças que saiam do quarto daquele solteiro. Queria a emoção que se chama amor, amor de ser humano. Porque cuidado, comida e água trocada, aquele homem, ser maravilhoso, lhe dava desde que a prendeu ali. Prendeu-a para amá-la melhor. Pensava a doida, já se sentindo mulher.
E novamente, de forma fantástica, não sabe explicar, ao cair da noite. Tornava-se uma ninfetinha, uma mulher madura, uma negra de olhos cor de mel, ou uma ruivinha pigoita. Todas apaixonadas pelo barbudo. Muito beijo e muita poesia. Agora ouvia dita para ela, poesias que já conhecia, pendurada em sua gaiola na varanda, perto do quarto dele. Melancólicas, falando em borboletas amarelas ou suavemente eróticas falando em flores roxas. Encantava-se, dando risinhos, prometendo-se toda àquele homem.
Então a sangue de boi, começou a perceber algum descuido para com ela na forma de ave. Nenhuma ternura. Sentiu ciúmes de si mesmo. Perdeu a bondade novamente e odiava todas suas formas humanas. Todas as noites, habitando o corpo que estivesse, lhe pedia que não a abandonasse. O barbudo retrucava, que sempre eram as mulheres que o abandonavam. Que nunca faria isso. Dizia a todas, que só era uma.
Mas por semanas nenhuma palavra de ternura. Quanto descuido. Ele esqueceu a gaiola aberta. Fugiu, voou meio tonta. Mas rápido seu instinto selvagem dominou-a. Alcançou as copas das árvores mais altas, e bicou o mais alto caju maduro, a mais alta manga madura. Felicidade. Sem ternura, mas razoavelmente feliz.
Ele o homem, que já não era mais barbudo. Sem barba, pareceu perder sua força. E angustiado, a mandar recados de ternura para as desaparecidas. Nada fez para tê-la de volta. Nem um assobio para que ela voltasse à gaiola, nem um pedaço de fruta. Não lembrou que ela gostava mais de manga de fiapo. Ela ficava lá nas árvores do quintal, algumas vezes a observá-lo. De saudade. Ele não a via. Suas angustias não permitiam.
O tempo passou, ela desistiu dele.

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